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Updated 2025-06-03
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Povo Que Escuta

Sessão “Dia Nacional do Folclore Português” no Batalha Centro de Cinema, Porto, 28 de Maio 2023.

Sinopse
   *No Dia Nacional do Folclore Português, João Polido apresenta uma sessão de escuta em torno de um episódio de Povo que Canta. A série — da autoria do etnomusicólogo Michel Giacometti e emitida pela RTP nos anos 70 — viajava por Portugal em busca das imagens e vozes, numa das mais importantes recolhas antológicas da música popular nacional. Nesta sessão, João Polido apresenta propostas sonoras sobre melodia e voz interpretadas ao vivo. A palestra é antecedida pelo visionamento do episódio O S. João na Tradição Musical Popular (1972, 21'), dedicado aos cânticos religiosos entoados durante a lavoura e às canções dos festejos de São João em diversas localidades do país.

Com participação musical de Puçanga e Violeta Azevedo. Duração aproximada da sessão: 70 minutos.*

Transcrição editada da palestre

   
O “Dia Nacional do Folclore” é designado no último domingo do mês de Maio desde 2016. Este ano, a data coincide com o Golpe de Estado de 1926, a revolução militar que acaba com a 1ª República, dando início à 2ª que depois se transformaria na ditadura que todos conhecemos.
Ao mesmo tempo que celebramos em breve os 50 anos de independêndia do Estado Novo, quero propor aqui algumas coisas que possam convocar fantasmas que têm génese nesse período.

Num programa de Mário Figueiredo, da RTP, em 2009, um dos seus convidados, o radialista Armando Carvalheda, reconta um encontro com José Afonso num café algures em Coimbra em 1968.
    Nesta altura, tinha o Armando 16 anos e o José Afonso acabara de lançar o disco “Cantares do Andarilho” — que é, por acaso, o disco que começa a transformação estética musical, que trata de recuperar formas musicais tradicionais e antigas.
Michel Giacometti, por sua vez, já teria acabado então uma primeira, grande fase do seu trabalho de recolhas acompanhado pelo compositor e musicólogo Fernando Lopes-Graça que, em paralelo, compunha e retrabalhava essas gravações em harmonizações, interpretadas por formações de coro ou instrumental.
Regressando ao café em Coimbra... o Armando pergunta ao José Afonso por que é que ele andava a recorrer a temas tradicionais na sua música, ao que ele lhe responde: “vocês [os jovens] têm de ouvir esta música de outra maneira.”
   Esta pequena história sintetiza uma dimensão importante, em que o assunto em questão não é apenas ou unicamente sobre a música tradicional, mas fundamentalmente sobre música, som e cultura, ou memória cultural. Sobre como nos relacionamos, como percebemos, ouvimos e comunicamos estes sons. Como educamos a nossa escuta.

[capa cantares do andarilho--arranjo gráfico josé santa-bárbara]

O que distingue o folclore, a música popular e a música tradicional?
Uma definição comum de música tradicional é ser música que origina numa tradição oral, e que caracteriza uma região geográfica e um contexto social, ou funções sociais.
    O musicólogo José Alberto Sardinha reconhece que “música tradicional (de tradição oral) é música que foi popular e que se transmitiu de geração em geração.” Ele descreve a dinâmica de conhecimento transmitido oralmente, onde frequentemente a autoria dissolve-se e a canção ou a história, ao ser assimilada por mais pessoas, torna-se anónima. Mistura-se na água.
    Um processo decorrente, embora em menor grau — basta tentarmos pensar em que lugares na Europa e fora dela, onde a música tradicional seja reconhecida como a música contemporânea desse mesmo sítio. Sardinha clarifica: “Música popular não quer dizer necessariamente música tradicional. Mas música tradicional é de certeza popular.” Há, portanto, aqui uma relação não recíproca, e uma ambiguidade na conversão.

Para a investigadora Clara Sousa, trata-se de uma questão sobre fidelidade de representação. Restringe-se o “antigo” a um tempo padrão: ”um limite para a existência de uma verdadeira expressão popular”, alheio ao processo histórico a decorrer no resto do país. No caso de hoje, para a Federação Portuguesa de Folclore, o limite cronológico situa-se em 1910. [citação possível?] Sobre esta perspectiva, a tradição é capturada como um corpo isolado e concreto. Por outras palavras, a verdadeira tradição estaria destinada a aldeias rurais sem qualquer contacto com o país em que se insere. A tradição para esse efeito quere-se cristalizada e digerível.
    A alienação da ruralidade com o resto do país, ainda para mais das figuras de autoridade e Estado, é um sentimento retratado, por exemplo, nos filmes “Gente do Norte” (1977) ou “Trás-os-Montes” (1977) de António Reis e Margarida Cordeiro, em que a população não se identifica como integrante do país, sentindo-se mais próxima dos horizontes migratórios de Alemanha ou de França do que de Lisboa.
   O episódio que acabamos de ver do Giacometti [O S. João na Tradição Musical Popular (1972, 21')], é uma história que se poderia considerar moderna, composta de artefactos ancestrais. O cinema antecede a invenção das tecnologias de captação e registo sonoro, e passam decádas até serem utilizadas no campo por motivos documentais e etnográficos. [esclarecer qual o primeiro registo em Portugal, feito por quem]

Por fim, depois da música tradicional e popular, como sugere a Susana Sardo, fica a faltar o quarto “F”: Fado, Futebol, Fátima, e Folclore. Na sua raíz etimológica quer dizer “saber do povo” e, por cá, é anexado de esclarecimentos pela ressignificação a que foi sujeito através do Estado Novo. “Folclore” surge a meio do século XIX, fruto de uma necessidade política de se definirem e amplificarem categorias sociais e identidades, subjectivas também mas principalmente nacionais. Neste período são criados hinos nacionais pela Europa.
    Também no século XIX, a ancestralidade ganha relevância [foco de quê? literário? cultural? político mas sob que medida?] e romantiza-se uma origem incorporada pelo povo rural e o campo. A música é das expressões artísticas mais potentes para o efeito, quando o Romantismo expressa sons musicais mais bucólicos, pastorais, para representar e emocianar — dos exemplos mais populares é o ressurgimento da música de Wagner por Hitler, meio século após a sua morte. A música de Wagner serviria para incorporar o Espírito alemão. Contesta-se um conceito de história, de passado e de memória, aproveitado pela cultura emergente [emergente, hegemonia actual..?] para formar uma política de identidades nacionais e despertar o interesse sobre folclore e origem.
    Nota de rodapé sobre isto, é que Almeida Garrett, responsável pelo levantamento e, mais tarde, revivalismo sobre o Romanceiro e Cancioneiro português a meio do séc.XIX, diz que “nada é português, nada é nacional, se não for popular.” [fonte] Embora Garrett tenha recuperado o romanceiro, José Alberto Sardinha afirma que “os nossos românticos não tinham a formação musical que tinham os britânicos”, e portanto não se fizeram recriações desse reportório. [fonte] 
    Já no séc.XX, no período de transição para o Estado Novo, essa realidade mantinha-se praticamente idêntica; os primeiros estudos sobre música rural feitos em Portugal seriam produzidos fora da academia e agrupados em colectâneas para um público erudito e urbano. Dada a tão recente invenção de tecnologias sonoras, as canções eram transcritas para pauta e texto — pondo de parte nuances sonoras que não têm representação simbólica em pauta, o contexto social, os costumes, e a dimensão coreográfica. Além de que este tipo de registo é alheio ao processo de transmissão oral. É um outro tipo de código.

É por tudo isto e não só, que a série “Povo Que Canta” do Giacometti e Alfredo Tropa é tão fascinante; o suporte visual ao mesmo tempo que nos ajuda a perceber o que ouvimos, também nos consegue confundir.
A ambivalência potencial do som é, para mim, das sensações mais viscerais e humildes que conheço, em que o olhar e o ouvido se enganam um ao outro, em que se interrompe uma linha directa de representação.
[... qual a função disto? a função de um exercício experimental?]

A política cultural do Estado Novo, a “Política do Espírito” desenhada pelo jornalista e escritor António Ferro, teria a música como alvo principal. Numa entrevista em 1932, Ferro cita Napoleão Bonaparte: “entre todas as artes é a música a que maior influência exerce nas paixões, e por isso, um legislador deveria preocupar-se mais com ela do que com qualquer outra.”
   Desde os anos 30, o regime de Salazar defenderia a aparência como uma realidade política [self-fulfilling prophecy]: “a aparência vale a realidade.” A construção de representações e códigos/símbolos é uma forma de poder brando para galvanizar um espírito nacional e definir um certo estilo, uma estética de “portuguesismo”. Para tal, foram montadas instituições governamentais como o SPN/SNI (Secretariado de Propaganda Nacional/Secretariado Nacional de Informação) e a FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), que actualmente conhecemos como INATEL. A cultura é articulada através do turismo, adoptando uma lógica representativa e económica — torna-se um recurso nacional. [alguma coisa do Jameson sobre esta volta? em signatures of the visible] Ao longo da década de 1930 e 1940, são desenvolvidos modelos de apresentação (espetáculo) e repertório populares das regiões portuguesas através de produção folclórica. Fixam-se identidades. As canções tradicionais ao serem trasladadas para repertório popular, por vezes, teria a sua melodia e/ou letra censuradas ou distorcidas de acordo com moldes ideológicos e/ou estéticos. [exemplo disto na Dulce Simões...]

Som 1: Censura
As canções do São João são um exemplo disto. Desta série de Giacometti e Tropa, no episódio de “Cantos de Trabalho em Estorãos (Ponte de Lima), a narradora menciona que a S.João são dedicadas as quadras mais desbocadas, e que é este “carácter frequentemente indecoroso da poética popular” que era por vezes ignorada pelos investigadores (por falso pudor, ou preconceitos descabidos.)
    É este o plano de fundo sobre o qual figuras como o Giacometti e Lopes-Graça disputavam; uma vontade para registar de modo a cultivar uma memória  possível a uma consciência política. O próprio título da série “Povo Que Canta” demonstra essa atribuição de agência autónoma e um eco da Frente Popular Espanhola. [fonte...] Não seria uma visão nostálgica de recuperar ou restaurar, mas primeiramente de afirmar; embora ambos, à sua maneira, também tenham em certas alturas romantizado algum sentido de pureza, à procura de uma ruralidade não contaminada.
A diferença está na abordagem ao encontro e o que fizeram com o que encontraram. Não existia a pretensão de um fim desse trabalho.
    Após a revolução de 1974, Giacometti começa a trabalhar para o INATEL (ex-FNAT), que passa a apoiar o seu projecto até ao final dos anos 70, pouco depois do fim do PREC; altura em que se dá um conflicto de expectativas e desilusões, forçando Giacometti ao trabalho independente.
Até ao fim da sua vida, ele tenta abordar a questão da institucionalização destes materiais acumulados ao longo de duas décadas, preocupado com a necessidade de catalogação, análise, e difusão. Um projecto que ficou por fazer.

Som 2: O S.João, Canto de Espadelar
Do mesmo episódio sobre cantos de trabalho em Estorãos (Ponte de Lima), este exemplo demonstra a hibridez de uma expressão. As cantigas de S.João tanto podiam ser encontradas nos bailes, nas romarias e nos campos. A mesma pode ser transposta para outro contexto, para outra função social.
Um canto de espadelar acompanha um trabalho desempenhado por mulheres, em que se liberta a fibra do linho da parte lenhosa, mais grossa. A polifonia no cantar é funcional, a acompanhar o bater sincronizado das espadelas nas fibras.

Vamos ouvir este exemplo dissecado em quatro elementos, através de uma técnica de processamento de áudio—separação de fontes—que tenho aplicado sobre este repertório, de modo a explorar as margens dos modelos de voz e de instrumentos de determinados algoritmos de análise espectral.
   A fonte sonora é estratificada de acordo com categorias musicais como, por exemplo, voz, percussão, baixo, piano, e outros instrumentos — categorias construídos através da análise espectral (tímbrica) de cada uma. A separação normalmente processa-se de uma destas duas formas: simples extração (deixando uma vazio de frequências) ou, a aplicação de máscaras de ruído (síntetiza uma “cama” de ruído para preencher o vazio deixado pelos elementos removidos). Em algumas gravações conseguimos ouvir como é que o modelo falha—como é que não identifica um som que nós sabemos que é voz, como sendo voz—e dessa forma, pode permitir-nos perceber melhor a presença de um elemento pela ausência de outro. 

Portanto, ao longo do “Canto de Espadelar” de S.João ouviremos uma sequência de transformações: começando com a versão mais isolada, a seguir o baixo, depois a percussão, e, por fim, entra a voz e saiem os outros elementos.
   A série “Povo Que Canta” ilustra principalmente a expressão vocal, pôndo em segundo plano os instrumentos populares e repertório instrumental. [fonte] Uma das excepções encontra-se no episódio que vimos hoje, a conversa com o adufeiro.
Mas em gravações onde só está presente um elemento (quer vocal quer instrumental), ao retirá-lo sobra um excedente, uma espécie de gravação de campo/artefacto.
    Antes de convidar a Puçanga e a Violeta Azevedo aqui ao palco, há mais outro excerto que vos quero dar a ouvir. O primeiro S.João que ouvimos no início do episódio, da Aldeia de Joanas, de Castelo-Branco, que se chama “S.João vem cantar.”
Agora ouviremos o processo inverso. Começamos com a cicatriz (a gravação de campo) até a voz entrar.

Som 3: S.João vem cantar (Aldeia de Joanas - Castelo-Branco)

Num outro episódio do “Povo Que Canta”, sobre a Romaria de S.João no Rosmaninhal (Idanha-a-Nova), Giacometti descreve como a festa “assinala a coexistência de elementos estranhos à tradição com práticas de origem remota”: “No baile e na vizinhança entrechocam-se imagens de passado com imagens difusas da chamada civilização industrial” (e.g. adufes a acompanharem músicas actuais de repertório urbano); e as consequências da transformação do mundo do trabalho: “a introdução de novos paradigmas de exploração e de novos equipamentos”, antigas práticas de apoio e de entre-ajuda são substituídas “pelo tempo das máquinas.”

Para esta sessão, convidei a Violeta Azevedo e a Puçanga para cada uma retrabalhar uma canção à escolha deste episódio que vimos. A Violeta interpretará a canção “S.João da Guarda”, a segunda do episódio, e é uma canção gravada em Teixoso, no concelho da Covilhã. A Puçanga escolheu a última que ouvimos, “Ai Se Fores ao S.João.”

Por último, ao falar com as duas sobre algumas das ideias para a sessão, há um mote que me tem acompanhado nos últimos anos, que roubo ao Lopes-Graça. Num concerto do Coro da Academia de Amadores de Música, no Tivoli em Lisboa, em que se iriam cantar novos arranjos e harmonizações a partir de músicas tradicionais, ele faz a seguinte introdução:
   “As canções que ides ouvir roubei-as eu ao nosso povo, que tem um grande tesouro delas: e roubei-lhas, não para as guardar para mim, mas com o propósito de lhas restituir, possivelmente com juro do roubo. Mandam a lei e os bons costumes que não fiquemos com os bens dos outros, mesmo quando os outros possuem tesouros. Ora, como as canções são um dos raros e preciosos bens do povo português, eu sentiria a consciência pesar-me se, apropriando-me delas, lhas não devolvesse. Não lhas devolvo, porém, tal e qual lhas roubei: fiquei com alguma coisa delas, e, ao devolver-lhas, procurei que elas não ficassem diminuídas no seu valor, antes diligenciais aumentá-las com aquele pequenino juro que está nas minhas posses despender.”
Algures num dos textos do “Povo Que Canta” escreve-se “O som e o canto tornaram-se ruído.” Ouvimos a partir daí.