Povo Que Escuta
João PolidoA sessão: mostra dois episódios do povo que canta, sobre o são joão e duas interpretações Violeta Azevedo e Puçanga.
Antes de começar, quero só apontar a coincidência deste dia que marca o dia nacional do folclore pela FFP (Federeção do Folclore Português) no último domingo de Maio, juntamente com o Golpe de Estado de 1926, a revolução militar que acaba com a 1ª República, dando início à 2ª, que pouco depois se transformaria no Estado Novo. Vale apontar isto que algumas coisas que falo mais à frente que antecedem a mudança de regime e serão amplificadas através da Política do Espírito de António Ferro.
Num programa de Mário Figueiredo, na RTP, em 2009, um dos seus convidados, Armando Carvalheda, radialista, contou um encontro que teve com Zeca Afonso, num café algures em Coimbra em 1968. Nesse ano tinha o Armando 16 anos e o Zeca acabara de lançar o disco “Cantares do Andarilho” — que é, por acaso, o disco que começa a transformação estética musical de Zeca ao tratar da recuperação de formas musicais tradicionais e antigas. [Isto numa altura em que o Michel Giacometti já teria acabado uma primeira, grande fase do seu trabalho de recolhas acompanhado pelo compositor Fernando Lopes-Graça, que em paralelo compunha e retrabalhava essas gravações em harmonizações, interpretadas por formações de coro ou orquestra.]
Portanto, neste encontro de café, o Armando pergunta ao Zeca porque é que ele andava a recorrer a temas de música tradicional na sua música, ao qual ele responde: “vocês [os jovens] têm de ouvir esta música de outra maneira.” A mesma música, outro tom. Não é apenas ou sequer principalmente sobre música tradicional, mas fundamentalmente sobre som, música e cultuar. Sobre como nos relacionamos, percebemos e ouvimos, e de quais são as nossas práticas de escuta.
O que é folclore, música tradicional e música popular? A definição comum de tradicional é ter fonte numa tradição de transmissão oral, que caracteriza uma região geográfica e um contexto social, ou funções sociais.
O musicólogo José Alberto Sardinha distingue como: “música tradicional (de tradição oral) é música que foi popular e que se transmitiu de geração em geração.” Sardinha descreve a dinâmica de conhecimento transmitido oralmente, em que frequentemente a autoria desvanece e a canção ou a história, ao ser assimilida por mais pessoas, torna-se anónimo. Mistura-se na água.
Isto é um processo ainda existente, embora em menor grau, mas especialmente forte noutras culturas e países fora da Europa, onde a música tradicional de um país é simultaneamente a música contemporânea. Há uma actualização dos modos de produção e das temáticas, trabalhados sobre o molde de formas e instrumentos musicais. Um conhecimento alternativo ao discursivo/textual e autoral, e consequentemente traz outras noções de autoria/propriedade e cultura num plano geral.
[?? tecnologia, instrumento, objecto através do qual mediamos e expressamos a nossa relação com o mundo]
[balde estanque, água parada, água ao moinho]
Sardinha clarifica ainda mais: “Música popular não quer dizer necessariamente música tradicional. Mas música tradicional é de certeza popular.”
Isto é, portanto, uma relação não recíproca, dependente de um processo sócio-cultural e político. A investigadora Clara Sousa descreve isto como sendo uma questão de fidelidade de representação onde se restringe o “antigo” a um tempo padrão — ”um limite para a existência de uma verdadeira expressão popular,” alheia ao processo histórico a decorrer no resto do país (para a Federação Portuguesa de Folclore, esse limite cronológico é 1910). Sobra a perspectiva da Federação, a tradição é tomada enquanto corpor isolado e concreto. Por outras palavras, a verdadeira tradição estaria destinada a aldeias rurais sem qualquer contacto com o país em que se insere. A tradição para esse efeito quere-se cristalizada e digerível.
Aquilo que acabamos de ver na série do Alfredo Tropa e Michel Giacometti, mesmo sendo alguns artefactos e expressões sociais ancestrais, é uma história que chega ao presente (i.e. a capital urbana, o centro legislador) do País há relativamente pouco tempo. Tem menos de 100 anos, é mais recente que a história do cinema. De certa forma, é uma história moderna, porque só nos chega com a invenção mais tardia das tecnologias de captação e registo de som.
E por último, como sugere a Susana Sardo, os três F’s, pilares da ditadura de Salazar, é composto por mais um. Depois do Fado, do Futebol e de Fátima, é o Folclore...
Na sua raiz etimológica quer dizer “saber do povo,” e requer um pouco mais de atenção devido às ressignificações culturais que tem sofrido, ou seja, acho incorrecto falarmos de folclore inglês e folclore português em modos iguais pois cada processo histórico foi tão diferente (podemos ver de que forma o folclore, e também o fado, foi socialmente tratado como um apêndice do Estado Novo nos anos que se seguiram após a revolução em 1974).
O termo “folclore” surge a meio do século XIX por uma necessidade política de se definirem categorias sociais, de se definirem e amplificarem identidades, subjectivas também mas principalmente nacionais. A criação de hinos nacionais, pelo menos na Europa, acontece em paralelo.
No século XIX o foco passa a ser a ancestralidade ao romantizar-se uma origem incorporada pelo povo rural e o campo. A música é das expressões mais potentes para este efeito, quando o movimento Romântico define musicalmente características bucólicas, pastorais, para representar e emocionar (e.g. a música de Wagner ressurge meio século após a sua morte para incorporar o Espírito alemão idealizado por Hitler).
Contesta-se um conceito de história, de passado e de memória, uma cultura que se alimenta também então de uma política de identidades (nacionais) e despertar o interesse sobre folclore, como forma de enraizamento de espírito.
Uma nota de rodapé sobre isto: Almeida Garrett, responsável pelo levantamente e depois revivalismo sobre o Romanceiro e Cancioneiro português a meio do séc.XIX diz que “nada é português, nada é nacional, se não for popular.”
Embora Garrett tenha recuperado o Romanceiro, José Alberto Sardinha afirma que “os nossos românticos não tinham a formação musical que tinham os britânicos,” e portanto não se fizeram recriações na altura desse repertório.
Décadas depois, durante o período de transição para o Estado Novo, os primeiros estudos sobre música rural feitos em Portugal seriam produzidos fora da academia e agrupados em colectâneas para um público erudito e urbano. Dada a tão recente invenção de captação/registo sonoro e a falta de meios, as canções eram transcritas na altura para pauta e texto — deixando de fora nuances sonoras, contexto e a dimensão coreográfica. Este tipo de registo é alheio ao processo de transmissão oral, é outro tipo de código.
A antropóloga Ann Rigney, ao tomar o passado como “um produto de mediação, textualização, e de actos de comunicação”,(25) aponta para um modelo de memória cultural sócio-construtivista, em que “as memórias de um passado partilhado são colectivamente construídas e reconstruídas no presente em vez de ressuscitadas do passado”;(26) numa tentativa de reconhecer a inerência da perda de memória e abandonando a utopia de uma recordação plena. A memória cultural corresponde a um período de tempo mais longo, quando os testemunhos em primeira mão se tornam (quase) extintos, restando apenas relíquias e artefactos. “Rosa de Areia”, como “Trás-os-Montes”, navega reflexões de um objecto extinto (ou em vias de). Através de técnicas diferentes de justaposição temporal/narrativa, visual e sónica, procuram a composição de mundos, parecendo sugerir que “o mundo tal como o conhecemos começa sempre a partir de mundos que já estão à mão”.(27)